As atuais eleições nos EUA estão realmente muito interessantes, como há anos eu não via. Não sou cidadão americano e, portanto, não posso votar. Mas posso aprender com elas. Os quatro principais candidatos são uma síntese dos dilemas da esquerda e da direita no mundo ocidental contemporâneo.
Sanders é chamado de comunista ou de populista de esquerda, como se Lênin quisesse conquistar a Casa Branca. Na verdade, suas propostas se aproximam da velha socialdemocracia do norte da Europa. Ele vê, na ação do Estado, uma maneira de aliviar as contradições do sistema capitalista e de promover justiça social. Ele apoia medidas progressistas no tocante a homossexuais, mulheres ou minorias étnicas, mas fica evidente como a sua bandeira central é conter os excessos do sistema capitalista através da democracia e do Estado, bem ao velho estilo socialista.
Isso pode ser visto como bom ou como mau. O velho socialismo ignorava as lutas das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos homossexuais e de outros grupos enquanto questões menores. O alvo central, a ser reformado ou abolido, era o capitalismo. O novo socialismo reforçou e incorporou a luta das minorias, o que é um avanço necessário, mas também, em alguns casos, acabou por abandonar a questão da luta de classes em favor dessas novas bandeiras, o que é questionável. Numa sociedade capitalista, afinal, conflito de classes é o principal e ignorar isso é problemático.
O melhor em Sanders, de qualquer modo, é ver uma esquerda que se assume como tal e não fica posando de neutra ou de amiga de todos. Tem propostas, as defende e briga por elas, sem se render à mídia ou à pressão externa. Pode ser que ele esteja ultrapassado, seja populista ou pouco realista, mas sua energia e clareza são um fato novo.
O pior em Sanders é o “risco Obama”, ou seja, da maior parte das reformas e promessas ficar no discurso e no vazio. Obama entrega os Estados Unidos muito melhores do que quando os recebeu, em 2008, mas grande parte do que ele prometeu ficou no papel. Em parte, por causa da sua timidez e moderação excessiva (o que não é o caso, a princípio, de Sanders), mas também porque o Congresso esteve em franca oposição a ele. Já que o Congresso tende a continuar nas mãos republicanas e uma parte substancial dos americanos continua a apoiá-los, o cenário para Sanders no poder seria ainda pior. Utopia com pouco realismo.
Um governo Clinton representaria um passo a frente na luta pela igualdade racial e de gênero nos EUA e não é a toa que, nesses grupos, ela seja muito bem votada. O grande problema de Hillary Clinton – tão explorado por Bernie Sanders – é a sua credibilidade para fazer mudanças de ordem tributária e econômica já que a sua ligação com os grandes grupos empresariais e com o establishment americano é mais do que clara. Se o “risco Obama” é forte no caso de Bernie Sanders, é ainda mais no caso de Hillary Clinton. No padrão americano (e ainda mais no padrão dos republicanos e outros conservadores), ela é uma perigosa revolucionária. Na verdade, seria a continuidade do governo Obama sob uma roupagem loira e feminina. Realismo puro, com pouca utopia.
Ted Cruz combina o neoliberalismo de Friedman ou Hayek com perspectivas muito caras à direita americana em geral (como a livre posse de armas) e adiciona uma boa dose de valores religiosos. Isso se reflete nas suas posturas e propostas políticas. No campo econômico, ele defende um sistema tributário sem proporcionalidade (ou seja, ricos e pobres pagariam as mesmas alíquotas) e que não penalizaria a propriedade, Estado mínimo, poucas proteções sociais, etc. No campo social e moral, ele é contrário ao direito da mulher de abortar, à educação sexual, aos direitos dos gays, à assistência médica gratuita aos cidadãos e a bolsas e apoios aos estudantes que não sejam de origem privada.
Do mesmo modo, defende o direito dos cidadãos a portarem armas, a pena de morte, a educação doméstica – seguindo a escolha dos pais – e a firmes barreiras contra a imigração ilegal. Também é contra medidas de proteção ambiental e apoia a indústria do petróleo, questionando a realidade do aquecimento global. Por fim, no campo externo, ele se opõe ao diálogo dos EUA com o Irã e Cuba e defende Israel. E é, evidentemente, o candidato mais próximo do fundamentalismo religioso que eu já tenha visto.
Ted Cruz, portanto, é o candidato perfeito da nova direita dos EUA e um indicador da polarização que tomou conta do Partido Republicano. Defensor de uma agenda de direita radical praticamente perfeita, ele é uma candidato avesso a qualquer compromisso, seja com os democratas, seja com os republicanos mais moderados ou que aceitem – como sempre foi a praxe no sistema político americano – o compromisso.
Trump, na verdade, é uma pessoa com convicções ideológicas muito menos arraigadas do que Ted Cruz, por exemplo. Numa suposta presidência Trump, é evidente que as propostas conservadoras dariam o tom, mas ele seria muito mais maleável e aberto a negociações do que dá a entender, enquanto alguém convicto de representar o bem contra o mal, como Ted Cruz, seria, nesse aspecto, muito mais preocupante.
Donald Trump, aliás, sempre oscilou entre democratas e republicanos e só se aproximou realmente do Partido Republicano nos últimos anos. Em boa medida, uma trajetória próxima de Bernie Sanders, outro outsider que só se tornou democrata para tornar viável sua candidatura à presidência.
O diferencial de Trump é que ele é um mestre na arte da imagem, tendo sido – o que não espanta – condutor de um reality show. Trump apresenta-se como um homem de fora do sistema, alguém que venceu na vida por mérito próprio, a encarnação do sonho americano. A realidade é outra, de um empresário que começou na vida como um grande herdeiro e cuja trajetória está repleta de denúncias de fraude, operações discutíveis, etc. No entanto, o que importa é a imagem e ele sabe trabalhá-la com maestria. A ostentação, a futilidade e o escândalo são explorados por ele com cuidado e, numa sociedade viciada no espetáculo, isso tem retorno político.
Ele também sabe explorar muito bem as contradições da sociedade americana e, especialmente, da classe trabalhadora e médio-baixa branca. Empobrecida e angustiada por décadas de neoliberalismo, assustada com a sua perda de influência, poder e pelas ondas de imigrantes, esse grupo quer respostas claras e rápidas para seus problemas e o candidato as fornece: os empregos retornarão através de negociações e fechamento do mercado nacional aos chineses; os imigrantes serão expulsos, os muçulmanos derrotados, etc.
Donald Trump também consegue aproveitar-se das limitações do politicamente correto. Ao não permitir que as coisas sejam chamadas pelos seus verdadeiros nomes e que as questões e opções sejam discutidas abertamente, o politicamente correto calou uma parcela da população, encantada por Trump simplesmente por ele falar o que todos pensam e não podem expressar, pois mais absurdo que seja. Ele não parece realmente levar a sério tudo aquilo que diz, mas consegue propaganda gratuita e votos.
Como bem indicado no interessante artigo de Federico Finchesteinb e Pablo Piccato (citado abaixo), tanto Trump como Sanders se apresentam como candidatos anti-sistema. Sanders, contudo, prega a política para enfrentar o poder econômico e a desigualdade, enquanto Trump defende a anti-política, num tom populista.
Para esses autores, o populismo é a rejeição da democracia tradicional, fundada em partidos e propostas, ainda que não rompa completamente com ela. O líder populista não tem vínculos fortes com partidos ou instituições, acredita que tem todas as soluções em suas mãos e identifica os opositores como inimigos a serem eliminados. O sistema democrático é tensionado ao limite, mas não formalmente eliminado. Como exemplos desse populismo moderno, os autores citam Hugo Chávez e Silvio Berlusconi.
Donald Trump se diferencia da maior parte dos republicanos moderados, assim, não tanto pelas suas propostas, mas pela clareza com que as apresenta e pelo seu desprezo pela democracia, que seus seguidores veem como obstáculo para que essas propostas sejam efetivadas. Talvez a maior novidade seja que o populismo, de esquerda ou de direita, era algo da América Latina ou do sul da Europa e agora se manifesta com força nos próprios EUA.
Quem vencerá a disputa? Difícil saber, especialmente porque a eleição presidencial nos EUA não é direta e, portanto, os votos no Colégio eleitoral podem diferir dos votos gerais, como aconteceu, aliás, com George W. Bush. Na soma geral de votos, contudo, eu diria que, enfrentando Donald Trump ou Ted Cruz, Hillary Clinton teria chances imensas de vencer. Afinal, o capitalismo precisa de estabilidade e o sistema sabe que Hillary não é nada mais que “Obama 2.0”, pouco ameaçadora, enquanto Cruz e Trump são incógnitas, potencialmente perigosos para os negócios. Agora, se o candidato democrata for Sanders, a equação muda e as chances de um dos dois se tornar presidente aumentam exponencialmente.
O que é certeza é que a era de estabilidade democrática (e capitalista) garantida por dois partidos com propostas diferentes, mas capazes de negociar e chegar ao compromisso, está em xeque. E a responsabilidade maior disso está no Partido Republicano e na sua radicalização à direita. Um cenário preocupante para qualquer um que, ano que vem, assuma a Casa Branca.
Finchelstein, Federico; Piccato, Pablo. Donald Trump may be showing us the future of right-wing politics. https://www.washingtonpost.com/news/monkey-cage/wp/2016/02/27/donald-trump-may-be-showing-us-the-future-of-u-s-right-wing-politics/?postshare=3791456587056703&tid=ss_tw. Acesso em 28/2/2016