João Fabio Bertonha

fabiobertonha@gmail.com

A Guerra da Ucrânia. Uma nova Primeira Guerra Mundial?

            Depois de um ano de seu início, a Guerra da Ucrânia já levou à produção de uma grande quantidade de textos procurando esclarecer a origem do conflito, o seu desdobramento no campo de batalha e os efeitos que uma guerra desse porte (cuja eclosão, aliás, eliminou de vez o argumento que a guerra convencional entre Estados seria algo ultrapassado e que nunca mais ocorreria) tem e terá no sistema internacional. Minha reflexão, contudo, caminha em uma direção diversa, para cem anos no passado, entre 1914 e 1918. Nessa época, um grande conflito entre as grandes potências destruiu o continente europeu e redefiniu o mundo. Será que estamos vendo uma repetição – em termos diferentes, obviamente – do que ocorreu então?

            Para sustentar essa hipótese, penso em diversas variáveis: contexto imperialista, acontecimentos fortuitos, hubris, decisões equivocadas, apostas e expectativas que se autoalimentam e das quais não se consegue sair, crise no campo de batalha, esgotamento e nova ordem. Colocadas em perspectiva comparada, talvez seja possível pensar em um paralelo entre os conflitos iniciados em 1914 e 2022.

            A Primeira Guerra Mundial só pode ser explicada dentro de um contexto de disputa imperialista intensa entre as economias e os Estados europeus (especialmente os industrializados, na Europa Ocidental) e de disposição de usar a força das armas para resolver essas disputas. O imperialismo não indicava a inevitabilidade de uma guerra geral, mas tornava essa hipótese mais provável do que o inverso. Ao mesmo tempo, um acontecimento fortuito – o assassinato de um arquiduque austríaco – acabou por levar a uma bola de neve de decisões equivocadas que, ao final, tornaram a guerra geral não uma possibilidade, mas uma realidade.

            Isso não significa afirmar que a guerra foi um equívoco, mas que a maior parte dos tomadores de decisão agiram sem conseguirem prever que suas ações imediatas teriam efeitos tão devastadores. E tais decisões equivocadas vieram, em boa medida, de um orgulho excessivo, de uma hubris capaz de cegar os governantes a respeito dos riscos que estavam a correr e a ver, nos inimigos, atores passivos que podiam ser subestimados ou mesmo ignorados. Os líderes militares austríacos, por exemplo, consideraram que massacrariam a resistência sérvia com facilidade sem a intervenção russa e que, se ela acontecesse, eles derrotariam os russos com o auxílio alemão. Já os alemães consideraram adequado entrar em guerra, de forma a acertar as contas com os franceses e os russos em uma campanha rápida, enquanto os últimos consideraram que os alemães eram superestimados e que seriam vencidos rapidamente. Enfim, uma longa série de avaliações equivocadas, cujo aspecto comum foi a crença de que a guerra seria rápida e decisiva.

            Após uma fase inicial, de movimento e marcha dos Exércitos, contudo, a guerra logo se converteu em uma de posições. A tecnologia militar, naquele momento, favorecia a defesa e logo milhares de quilômetros de trincheiras se espalharam pela Europa, com metralhadoras e artilharia cobrando um preço alto para ganhos quase nulos em termos de terreno. Todos os contendores tentaram encontrar saídas para fugir desse impasse e fazer a guerra de movimento se reiniciar (tanques, gás venenoso, tropas de elite de assalto etc.), mas, ao final, a tecnologia de defesa se revelou superior. Apenas na Segunda Guerra Mundial é que a tecnologia avançou o suficiente (tanques melhores, veículos motorizados, aviação) para superar o predomínio da defesa. Na guerra de 1914-1918, a luta se travou essencialmente entre massas de infantaria e artilharia e só se decidiu porque as Potências Centrais ficaram sem homens e recursos (especialmente depois da entrada dos Estados Unidos na guerra) primeiro.

            Dado esse impasse, contudo, por que os beligerantes não optaram por um acordo? Ao perceberem para onde a guerra caminhava, ou seja, para a destruição de uma geração no campo de batalha e o esgotamento de todos os envolvidos, não valeria a pena voltar atrás? O problema é que quanto mais um país se envolvia no conflito e mais caixões chegavam nos lares, mais difícil era estabelecer compromissos. Após perder centenas de milhares de homens ao final de 1914, como Alemanha ou França podiam dar marcha a ré e negociar a paz? Como então justificar as mortes e as tragédias da guerra politicamente? Os objetivos de guerra se tornavam cada vez maiores, até para justificar o que acontecia. Nesse contexto, não havia como voltar atrás e já que a resolução não pôde acontecer de imediato no campo de batalha, foi-se até o fim, até um dos lados ceder.

            Ao final, com os tratados de paz, estabeleceu-se uma nova ordem no mundo, mas ela ainda não rompeu completamente com a anterior. Foi necessária uma continuação da Primeira Guerra,  entre 1939 e 1945, para uma nova realidade se completar: em 1945, duas superpotências ascenderam para dividir o mundo, os antigos impérios coloniais e a supremacia econômica europeia desapareceram e os Estados Unidos começaram a dirigir o mundo capitalista.

Essa nova ordem se manteve até o fim da União Soviética, quando uma nova realidade, mas ainda muito ligada a anterior, se impôs: uma fase de dominação ainda mais acentuada dos Estados Unidos e do capitalismo financeiro no mundo. Essa fase durou, grosso modo, entre 1991 e 2011, quando começou uma nova era de redefinição, com a ascensão chinesa, a decadência e a recuperação da Rússia etc. Nessa última década, um novo contexto foi lentamente se formando: a hiperpotência americana e a dominação do capitalismo global pela sua versão liberal financeira, baseada em Wall Street, começaram a ser questionadas por um bloco russo-chinês. É esse contexto de nova competitividade mundial que permitiu e que explica a invasão russa da Ucrânia.

Novamente, contudo, esse contexto não precisava obrigatoriamente ter levado à guerra: acontecimentos imediatos aceleraram o processo e erros de avaliação tornaram o possível e até provável em realidade. O Ocidente subestimou a resistência russa à expansão da OTAN (sendo a perspectiva de incorporação da Ucrânia e da Geórgia a  gota final)  e a própria Rússia talvez tenha avaliado mal a determinação ocidental em apoiar a Ucrânia. Entrou em jogo novamente, aliás, a hubris: a Ucrânia se convenceu que Moscou jamais ousaria agir para impedir a sua inserção no Ocidente, já que ela contava com o apoio de Bruxelas e Washington, e a Rússia também parece ter avaliado que ameaças de intervenção militar bastariam para impedir isso. Ao subestimar os adversários, ambos acabaram se colocando em uma posição da qual era impossível sair: ao ameaçar a Ucrânia com a intervenção militar caso ela não recuasse, Putin se viu quase que obrigado a cumprir a sua promessa quando os ucranianos, bancados pelos americanos, não o fizeram. E esses não podiam também abandonar seus projetos depois de terem se comprometido tanto com eles. Depois que as cartas estavam na mesa, era impossível voltar atrás.

A hubris também explica a razão de o ataque russo ter sido tão mal sucedido. Os russos subestimaram o adversário, considerando que os ucranianos eram fracos e não resistiriam: bastaria um passeio de tanques russos pela Ucrânia para obrigar a uma mudança de regime e a reversão dos projetos que incomodavam a Moscou. Isso não aconteceu e os ucranianos infringiram baixas severas aos russos. A tecnologia militar voltou a favorecer a defesa, tornando mais difícil o uso de tanques, aviões e outros sistemas da guerra de movimento, ceifados por sistemas antitanque e antiaéreos. O sistema de batalhões táticos russo também se revelou defeituoso, especialmente pela falta de infantaria, o que explica o enorme número de veículos blindados e tanques destruídos na primeira fase da guerra.

O fracasso russo na primeira fase da guerra da Ucrânia, aliás, indica como Putin não tinha como objetivo, inicialmente, a conquista do país. Não se derrota e ocupa um país como a Ucrânia com menos de 200 mil soldados e os russos não invadiram o território ucraniano seguindo a sua maneira de fazer a guerra (ou seja, com centro na artilharia, enquanto os americanos enfatizam a aviação e o movimento), mas com colunas leves, em vários eixos. O objetivo era forçar uma mudança de governo ou de atitude e não a conquista completa. Se o objetivo fosse realmente a destruição da Ucrânia ou a sua conquista, os russos teriam sido obrigados a mobilizar um número maior de soldados e teriam avançado lentamente, em massa e sob fogo de artilharia de apoio, e não da forma como o fizeram.

Militarmente, assim que a aposta em uma solução rápida se revelou falha, a guerra caminhou para um impasse e para uma guerra de posição, de desgaste. As grandes manobras blindadas, de envolvimento do inimigo, desapareceram e o que se vê agora é a luta de infantaria e artilharia, em um modelo de guerra de desgaste similar ao de 1914-1918. Os russos, na verdade, lutam agora da forma que preferem, mas eles ainda não contam com a massa necessária para derrotar os ucranianos, e vice-versa. O que se discute  nesse momento não é a capacidade russa ou ucraniana de derrotar o adversário em uma batalha de movimento decisiva, mas a de produção de granadas de artilharia (disparadas às dezenas de milhões) e de mobilizar homens para a morte na luta em trincheiras.

Bakhmut é um bom exemplo. Lá se combate em trincheiras, no corpo a corpo, sob chuvas de projéteis de artilharia. Manter ou defender a cidade a qualquer custo não faz sentido em termos estratégicos, mas se tornou uma questão de honra, simbólica, assim como reflete a decisão, tanto ucraniana como russa, de sangrar de vez o adversário naquele local, impossibilitando-o de atuar em outras frentes e, potencialmente, vencendo a guerra de desgaste. Não é uma réplica quase perfeita, se esquecemos dos drones que guiam a artilharia ou dos blindados que lutam junto com os soldados, de Verdun, em 1916?

Dada essa realidade militar, as chances maiores são que a guerra se estenda por muito tempo: o lado que aguentar mais o desgaste vencerá. A diferença é que, do lado russo, existe autonomia estratégica, pois os russos fabricam as armas e munições que precisam. Do lado ucraniano, a decisão de continuar a lutar ou não está, na realidade, em Washington. Se os americanos decidirem recuar e suspenderem o apoio à Ucrânia, a guerra termina, mas não há sinal disso no horizonte.

E, do mesmo modo que aconteceu antes, a vitória (ou empate) por atrito e desgaste é a única alternativa possível também por uma questão política: tanto Putin como Zelenski não podem recuar depois de tantas perdas humanas e danos materiais. O objetivo mínimo da Ucrânia (e dos Estados Unidos) agora é a libertação total do país e a deposição de Putin, enquanto esse só pode aceitar a paz se houver concessões territoriais e a neutralidade da Ucrânia, além da queda de Zelenski. Nenhum dos lados pode aceitar menos, pois já estão engajados demais na luta e seria suicídio político pensar em dar marcha a ré. 

O resultado do conflito, obviamente, está em aberto, mas as apostas são tão altas que o risco de um conflito nuclear passa de zero a possível. Se a Ucrânia for derrotada no campo de batalha e Kiev, Washington e Bruxelas aceitarem o fato, ok. Mas se a Rússia se ver diante de uma derrota catastrófica (como, por exemplo, a perda da Crimeia),  humilhação total ou mesmo se sentir ameaçada na sua sobrevivência, um artefato nuclear poderia ser utilizado para reverter a derrota. O que poderia acontecer a partir daí é imprevisível.

O que está claro é que a guerra acelerou as coisas e uma nova ordem internacional está a se formar: o que se esboçava em 1991 e, especialmente, a partir de, mais ou menos, 2011, se consolida agora. Os Estados Unidos reagrupam ao seu redor a Europa – que abandonou suas pretensões de autonomia -, a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia, Israel, Japão e outros países. O bloco russo-chinês se consolida e começa a pensar nas desdolarização da economia mundial, no que seria um golpe de suma importância na hegemonia americana. Já países que sempre tentaram se equilibrar entre eles – como o Brasil e a Índia – têm essa possibilidade restrita até pela polarização geral.

Em 28 de julho de 1914, ninguém podia saber que o simples assassinato de um nobre levaria a uma aceleração da História e, poucos anos depois, a um novo mundo. No entanto, talvez fosse possível vislumbrar, então, que algo estava a mudar. Hoje, não podemos obviamente saber como será o mundo nas próximas décadas, mas faço uma aposta que pensaremos no dia 24 de fevereiro de 2022 como início de uma nova era.

Para os interessados em ver a fala que deu origem a esse texto, ver       

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Publicado em março 31, 2023 por .
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