A ciência é, em última instância, uma forma de entender e captar o mundo e a realidade a nossa volta. Resumindo, a ciência se caracteriza pela observação sistemática, coleta de dados, formulação e comprovação de hipóteses e, por fim, a elaboração de um conhecimento sólido, mas não permanente, já que pode ser revalidado ou repensado conforme novas evidências. Ou, se quisermos resumir ainda mais, a ciência é a busca eterna da comprovação através de um conjunto de normas e procedimentos estabelecidos: o método científico. Por outro lado, a fé, seja qual for, é, por definição, não científica, já que deriva de um crença em algo, que não precisa ser comprovado.
A discussão sobre a epistemologia da ciência é contínua (desde Descartes ou Bacon até Popper, Kuhn e outros), mas o que a torna única é justamente essa busca de explicações racionais baseadas em hipóteses e teorias elaboradas e discutidas, por sua vez, através da observação e das evidências. As várias ciências, contudo, têm sistemas diferentes para chegar à isso.
Nas ciências exatas, por exemplo, a observação é, quase sempre, feita em experimentos controlados, em laboratório. Normalmente, os artigos nas ciências naturais giram em torno de apresentar uma experiência, dando os dados para a sua repetição, e, a partir dela, apresentar novas hipóteses ou teorias. Na elaboração das hipóteses, teorias, modelos e teses (as diferenças entre elas é ponto para outro artigo), é também essencial o uso da matemática, a língua das ciências naturais. Uma tese comprovada em experiências empíricas, com uma base matemática correta e internamente lógica só poderá ser contestada por outra nos mesmos princípios que acrescentem dados ou indiquem a impropriedade dos anteriores.
Na maior parte das ciências humanas, esse sistema é inviável. Nós trabalhamos com ações humanas, as quais não seguem parâmetros matemáticos (ou, ao menos, nenhum matemática que tenha sido descoberta até o momento) e não podem ser reproduzidas em laboratório. Nosso sistema é outro. Nós buscamos indícios das coisas (em documentos, entrevistas, bancos de dados, observação em campo) para elaborar nossas hipóteses e teses e fazer avançar o conhecimento.
No caso da História, nosso paradigma é o indiciário, como explicado por Carlo Ginzburg em texto clássico. Nós coletamos indícios, vestígios, restos de fenômenos ou fatos que já se extinguiram e que não são mais reproduzíveis. A partir desses indícios, os historiadores criam suas hipóteses e elaboram suas teses. Nesse sentido, a proximidade maior do historiador é com os juízes, os peritos criminais e outros profissionais que também estudam algo a partir do que restou dele.
Não basta, contudo, coletar os restos do passado. Há também que se aprender o método histórico, ou seja, entender como os registros do passado são produzidos, com qual intenção, para qual fim e aprender a cotejá-los, a entender a complexidade do entrelaçamento de memórias que emergem do tempo. Simultaneamente, o historiador deve ter uma perspectiva teórica clara, que ilumina seu estudo do passado, e, igualmente, deve estudar em profundidade um período, para colocar em perspectiva as memórias e os registros do passado que surgem.
O historiador, portanto, não é apenas aquele que vai a um arquivo ou coleta um depoimento. Ele é aquele que conhece em profundidade um período, tendo lido a bibliografia relevante e entendido os consensos e os pontos de discussão válidos dentro de um dado tema. A partir disso, de uma base teórica concreta e de um entendimento seguro de como os registros do passado chegam ao presente, ele é capaz de construir uma narrativa que dá sentido ao passado. O juiz produz um veredito, um médico um diagnóstico, os historiadores produzem trabalhos de História. Se seguirem esses parâmetros, são produtores de conhecimento científico comprovável e as notas de rodapé (que remetem aos documentos e às obras teóricas e de contexto relacionada ao tema) são o nosso equivalente às experiências de laboratório.
Seguindo esses parâmetros, fica evidente que a História é subjetiva, sujeita ao acaso, a resultados não previstos, etc. No entanto, não é totalmente caótica. Há um “espírito do tempo” que define as alternativas viáveis e as extremamente improváveis. Além disso, há questões estruturais. O capitalismo, por exemplo, é o sistema que define o mundo há 200 anos e ele funciona dentro de regras próprias, as quais, regularmente, produzem os mesmos resultados. O Brasil, por sua vez, é um projeto de cinco séculos que continua a funcionar como previsto, com a mesma sociedade excludente e pouco moderna se afirmando e reafirmando século após século. A História é subjetiva e sujeita ao acaso e às circunstâncias, mas não totalmente.
Do mesmo modo, nem toda escrita da história é equivalente. Ao contrário do que sugere o pós-modernismo, nem todas as formas de saber se equivalem. Há boas narrativas, embasadas no método histórico e que captam a objetividade e a subjetividade da História. Essas narrativas mudam com o tempo, abrangendo novas perguntas e questões e as demandas de novos grupos sociais, e isso apenas enriquece a História. Há também versões falsas, normalmente baseadas em abordagens parciais, com pouca base teórica e metodológica e em fontes ou com interesses políticos evidentes. Discordâncias entre interpretações sólidas, em termos metodológicos, podem existir e ampliam a nosso conhecimento dos fatos. A dicotomia mais básica de todas, aquela entre verdade e mentira, parece, contudo, ter sido esquecida e essa é a fonte de boa parte das dificuldades do mundo atual.
O problema maior, em termos políticos, é que a História, ao ter sua base de comprovação, de verdade, em bases indiciárias, abre as portas para a ideia de que qualquer conclusão é possível. Boa parte do debate público ao redor da História gira em torno do “E se?”. E se não tivesse (tido) um golpe no Brasil em 1964? E se a Alemanha não tivesse invadido a URSS em 1941? E se Al Gore tivesse sido eleito presidente dos EUA em 2000?
O historiador pode e deve trabalhar com essa perspectiva do que poderia ter acontecido. Afinal, ao conhecer as alternativas disponíveis num dado momento, é possível especular sobre futuros possíveis e rumos que a História não tomou. No entanto, não há como ir além disso, de especulações, de exercícios mentais para imaginar um cenário possível.
Nas obras da chamada “história alternativa” isso fica claro. Quase sempre se escolhe um momento decisivo na História e se alteram os fatos. A partir desse momento, a imaginação do autor fica mais ou menos solta e ele pode criar os cenários que achar melhor. O historiador, contudo, não tem a possibilidade de fazer isso, a não ser que esteja escrevendo como romancista. Não há como ter absoluta certeza de como os fatos, os acontecimentos se desdobrariam e como a História seria alterada por uma mudança pontual. Uma mudança de liderança, por exemplo, seria irrelevante ou mudaria tudo?
Se Bukharin, por exemplo, tivesse vencido Stalin na União Soviética dos anos 1920, a possibilidade de ele tentar ser mais flexível com relação aos camponeses é razoável, mas não a de ele querer devolver o poder aos czares. George Washington poderia, quem sabe, ter pensado numa Monarquia constitucional para os EUA em 1776. Altamente improvável, mas menos ainda seria ele ter pensado num regime como o dos faraós do Egito. Tudo é possível em História, mas nem tudo é provável.
O grande problema desses “E se?” nos dias de hoje é que a história alternativa não é mais apenas um gênero literário, algo com que se divertir, mas se tornou pauta política. Não há, por exemplo, nenhuma base empírica ou historiográfica para afirmar que, por exemplo, o Brasil estava à beira de uma revolução comunista em 1937 e que o golpe de Getúlio salvou o país. Ou que Stalin, no maquiavelismo mais puro, estimulou a invasão da Alemanha ao seu país em 1941 para depois conquistar a Europa Oriental. No entanto, como isso é conveniente politicamente para muitos, essas versões são brandidas ostensivamente.
Esse é o nosso dilema como historiadores no mundo das fake news. Há uma grande confusão – proposital – entre o direito de ter uma opinião e o fato de que opiniões não são o equivalente a conhecimento. É um direito democrático opinar sobre o que se quer, mas, como indicado acima, há opiniões fundadas em pesquisa, em método, e opiniões que surgem do nada. Ou, ainda pior, que surgem do objetivo de angariar vantagens políticas ou de outro tipo, através das conhecidas máquinas de produzir mentiras, especialmente na mídia e nas redes sociais, que marcam a nossa época.
Se a ciência histórica fosse laboratorial, tudo seria mais fácil. Poderíamos, por exemplo, criar um experimento simulando a Segunda Guerra Mundial sem Pearl Harbour, por exemplo, e ver o que aconteceria, com absoluta certeza. Isso anularia imediatamente as outras versões, serviria como prova absoluta? Provavelmente, não. Afinal de contas, o irracionalismo chegou a tal ponto que mesmo as ciências duras, laboratoriais têm sido colocadas em cheque. Se não fosse assim, não estaríamos debatendo vacinas ou que a Terra é redonda. Mas nas ciências humanas, o crivo da verdade, do comprovável é ainda mais sutil e isso abre as portas para todos tipo de especulação.
Depois, os profissionais das ciências humanas têm que lidar com outro problema. Há uma crítica generalizada que nós usamos uma linguagem complicada, conceitos que a maioria das pessoas não compreendem, que escrevemos “textões” (livros e artigos) que a maioria das pessoas não tem paciência de ler, etc. Dessa forma, é nossa culpa que sejamos incapazes de atingir o público geral, dando vez a todo tipo de youtuber, influencer, etc.
A crítica é correta até certo ponto. Os historiadores devem, no meu entendimento, escrever o mais possível para o público geral; afinal, essa é nossa razão de existir socialmente. Transformar o conhecimento consolidado em algo mais leve e legível é possível e necessário. No entanto, não se pode esperar que abandonemos o necessário rigor do método histórico e da disciplina como um todo, sob pena de perdermos o que faz do conhecimento por nós produzido algo mais denso.
Do mesmo modo, essa crítica ignora o imenso investimento das mídias e dos grandes atores políticos e sociais em difundir o máximo possível de informações e opiniões vagas, numa cacofonia sem fim. Antes, a dominação cultural se dava pelo sequestro das opiniões “perigosas” (através, por exemplo, da censura). Hoje, ela se dá pela inundação de informações, na maioria das vezes, vazias. Para os historiadores, é muito difícil competir com isso.
Em resumo, o historiador teria a sua vida facilitada se fossemos uma ciência experimental. Como a História, contudo, não é reproduzível em laboratório, nossos dilemas são outros. No entanto, está na hora de reafirmarmos que produzimos conhecimento sólido e que temos sim uma posição especial para discutir o passado e o presente. Não somos os senhores da verdade, mas também não deveríamos ser apenas uma voz entre tantas. As opiniões vazias e o achismo sempre foram um problema, em qualquer época. No mundo contemporâneo, contudo, elas acabam por se tornar perigosas e levam a desdobramentos catastróficos, como o triste Brasil depois do golpe de 2016 e da eleição de Bolsonaro em 2018 podem comprovar.