Um dos maiores problemas econômicos do chamado “socialismo real” (a não confundir com países capitalistas com regulamentação estatal, o que é bem diferente) foi a dificuldade em estabelecer uma ligação entre o consumidor final, o comerciante e o produtor. No sistema estabelecido na União Soviética e no bloco comunista, os preços eram determinados por um sistema centralizado. Eles podiam permanecer os mesmos por anos ou décadas ou sofrerem pequenas variações, mas sempre a partir de uma avaliação do comando central. Isso eliminava a inflação (ainda que ela ressurgisse através do mercado negro) e garantia preços baixos, mas também tinha inconvenientes, sendo o principal a perda da flexibilidade.
Dessa forma, os interesses e expectativas dos consumidores – estamos pensando, nesse ponto, em bens de consumo e não de produção – não atingiam os tomadores de decisão ou, se atingiam, era em tempos longuíssimos, o que fazia o sistema, como um todo, perder dinamismo.
Se, por exemplo, havia uma demanda, em uma dada região, por um tipo particular de sapato ou creme de barbear, o atendente da loja que os vendia podia senti-la e passar a sua sensação ao administrador da loja. Esse, provavelmente, tinha pouco interesse em responder a isso, já que seu salário já estava garantido e, sendo a loja estatal, tanto fazia se o consumidor estivesse satisfeito ou não. Mesmo que ele tomasse a decisão, contudo, de fazer algo e escrevesse um relatório ao comando central informando isso, a resposta provavelmente seria insatisfatória. Ou sua demanda por mais produtos daquele tipo seria ignorada ou poderia ser até aceita, exigindo um novo fluxo de papéis e ordens para as fábricas estatais ordenando uma produção maior daqueles produtos da maneira que se desejava. Até os novos produtos chegarem às prateleiras, contudo, é provável que os consumidores não quisessem mais aquilo e o ciclo de insatisfação recomeçava.
O mesmo se dava no tocante aos preços. Uma enorme demanda de sapatos e creme de barbear não implicava em aumento de preços, já que todos eram controlados, e, mesmo que houvesse aumentos, o sistema não respondia a eles. Afinal, para que uma empresa estatal – com seu balanço garantido – se preocuparia em produzir mais, vender mais e ter mais receita se suas despesas e receitas pouco importavam? Dessa forma, o preço não servia para um controle da demanda nem para estimular maior oferta.
Esses eram problemas do socialismo real que os próprios economistas do bloco comunista conheciam bem. A perestroika de Mikhail Gorbachev foi uma tentativa de corrigir isso, ainda que infrutífera, e o debate continua se é possível uma economia centralizada que trabalhe melhor essas questões.
O capitalismo funciona de uma forma diversa e, nesse caso em particular, melhor. Em primeiro lugar, porque os preços flutuam. A precificação é um instrumento fundamental, na economia, para controlar demanda e oferta. Em teoria, quanto mais um produto é escasso ou desejável, mais seu preço aumenta, enquanto o contrário leva à queda. Não é um instrumento perfeito, pois a concentração de renda, a questão do status social e outros elementos subjetivos fazem da precificação algo que não é matematicamente neutro. Mas é um instrumento que o capitalismo utiliza e cuja falta, no socialismo real, foi complicada.
Em segundo, porque o mecanismo de detecção e atendimento de demandas é feito por uma rede imensa de indivíduos e empresas, em competição. Se o dono de uma academia identificar que há uma demanda por uma aula x e for o primeiro a oferece-la, a tendência é ele ser premiado com mais alunos e lucros. Se uma indústria introduzir uma nova tecnologia e reduzir seus preços com ela, também tenderá a dominar uma parcela maior do mercado. Novamente, esse sistema nem de longe é perfeito, pois os mercados são influenciados também por fatores subjetivos, cartéis, monopólios públicos e privados, etc. Não obstante, é um canal interessante e como os atores individuais têm interesse e autonomia para agir rapidamente, ele permite que as necessidades sejam atendidas com mais rapidez.
Novamente, contudo, esse sistema tem um problema de difícil solução: o ator individual normalmente só consegue ver o que está diante dos seus olhos e sua tomada de decisões não leva em conta o contexto maior. E, o que é ainda mais complicado, quando muitos atores individuais tomam decisões que fazem sentido para eles, mas sem levar em conta o todo, o resultado geral pode ser negativo para todos.
Pensemos no dono de um posto de gasolina em bom momento da economia. Ele está vendendo muito, mas seu objetivo é ganhar ainda mais, como é o modelo capitalista. Ele identifica imediatamente uma forma de aumentar os lucros, ou seja, diminuindo os custos com funcionários e pressionando para a diminuição dos impostos. Supondo que ele sozinho seja capaz disso, sua lucratividade aumenta. Mas, se todos os empresários (grandes ou pequenos) conseguirem esse objetivo, o Estado perde capacidade de investimento e a massa salarial como um todo cai. De repente, esse dono de posto de gasolina vai perceber que o que ele ganhou reduzindo custos salariais e impostos não compensa o que ele perdeu em receita porque nem o Estado nem as pessoas têm dinheiro para gastar no seu estabelecimento.
A questão, em teoria, é de fácil compreensão e não deveria ser difícil, portanto, fazer essas pessoas entenderem isso. O problema é que, daí, entra a lenda da meritocracia. Você pode convencer uma cabeleireira, por exemplo, que, se as pessoas ficarem sem dinheiro, o negócio dela será afetado. Mas, normalmente, essa cabelereira vai continuar defendendo o corte salarial, trabalhistas, etc. dos seus funcionários. O raciocínio: “Concordo que todos os salões serão afetados se a massa salarial cair, mas o meu salão não o será. Ele é tão melhor, tão espetacular, que a clientela não vai diminuir nem um pouco. Portanto, todos quebrarão, mas eu, com minha competência superior, vou crescer e lucrar ainda mais nessa nova situação”. O mesmo vale para médicos, dentistas, donos de pequenas lojas, etc.
O problema, claro, é que isso não é verdade, salvo exceções pontuais, e provavelmente esses profissionais liberais e pequenos industriais e comerciantes também sentirão os efeitos da crise, com diminuição de ingressos e até falência. Quando isso acontecer, o ciclo se completará, provavelmente, com uma busca de culpados. Afinal, se eu fiz o dever de casa – trabalhei, estudei, etc. – e não consigo lucrar, a culpa tem que ser de alguém ou de algo que está me sabotando, o que gera raiva, ódio e frustração, tão bem explorados pela política. Ignorar o contexto maior e reconhecer que nem tudo depende da sua ação individual é algo, contudo, que está na essência do sistema capitalista, que preza o individual. Uma grande vantagem pode ser, portanto, também uma gigantesca desvantagem.
Isso talvez ajude a explicar porque tantas pessoas, especialmente na classe média, preferiram apoiar, no voto ou nas redes, projetos que, no final das contas, só vai os empobrecer. No modelo que está a se desenhar, não haverá mercado interno relevante no Brasil, a ser convertido numa grande fazenda de soja, num campo de mineração para exportação e no paraíso das finanças especulativas. O agronegócio, os banqueiros e os grandes proprietários de minas (como a Vale) podem ser chamados de egoístas ou acusados de não terem projeto coletivo de Nação, o que é real. No entanto, pensando na lógica do sistema, são os que mais agiram conforme seus interesses: tendo o mercado no exterior ou explorando o que sobrar do Estado, não precisam de mercado interno e, portanto, todo e qualquer corte em salários, benefícios e gastos públicos só aumenta a sua taxa de lucro. Já os trabalhadores e a classe média deram e dão um tiro no pé ao sustentar essas políticas.
O mesmo vale para a indústria nacional, que aderiu a um projeto que, ao final, vai acabar destruindo-a. Nesse caso, contudo, a questão fica mais complicada, pois os grandes industriais são, com certeza, muito bem assessorados e deveriam, em tese, saber o que estavam fazendo. Ou eles também imaginam que vão lucrar no novo cenário, seguindo o modelo apresentado acima, ou talvez estejam convertendo suas fábricas em dinheiro a ser aplicado no mercado financeiro, os convertendo em rentistas. É um caso que merece ser discutido com mais cuidado.
Claro que tudo o afirmado é apenas parte da questão. O sonho liberal e iluminista (que o marxismo, na verdade, replicou) de que a política seria conduzida pelo raciocínio e pelos interesses individuais, de classe e coletivos se revelou, há muito, falso. As pessoas – seja por ignorância, seja por conveniência – votam também por emoções, preconceitos, avaliações parciais da realidade e, acima de tudo, por medo, de coisas verdadeiras ou falsas. Criar e difundir o medo é uma das melhores estratégias para desviar o foco das questões maiores e produzir reações emocionais na direção desejada.
O que é interessante, ao final, é que vivemos em um momento em que os discursos dominantes pregam a morte das ideologias, a necessidade de despolitizar tudo e que a luta de classes não existe. No entanto, justamente os grupos cujos representantes mais fazem essas afirmações foram os que melhor entenderam as coisas: agiram politicamente, em defesa de seus interesses, da sua ideologia, da sua visão de mundo, e venceram.
O empresário americano Warren Buffet, disse tempos atrás: “Claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos, que está lutando, e estamos vencendo”. Examinando a política recente do Brasil (e, na verdade, do mundo ocidental como um todo), pode-se afirmar que ele está certo.