Colonialismo e escravidão. Quando o tempo presente modifica o historiador
Uma das primeiras coisas que qualquer estudante de História aprende é historicizar tanto os autores que lê como os personagens e fenômenos que estuda. Isso, em essência, significa entender o contexto em que um dado texto foi produzido, o pensamento e as preocupações do seu autor no momento de sua produção, etc.
Para o próprio autor de um ou mais textos, a “auto historicização” ou a autocrítica também são um exercício fundamental. Não é necessário e nem desejável jogar periodicamente fora tudo o que se escreveu, como sugeriu um presidente da República recente. Isso revelaria a pouca consistência do pensamento, a adesão a modismos ou um pragmatismo intelectual excessivo. O autoquestionamento, a mudança interna e a revisão de posicionamentos e propostas, contudo, são um exercício salutar. Apenas o ideólogo (no pior sentido da palavra) ou o dogmático permanecem com as mesmas ideias ou perspectivas no decorrer de toda uma vida ou de toda uma trajetória intelectual.
Há duas grandes fontes para o autoquestionamento. Uma é a leitura e a reflexão crítica a respeito da experiência dos outros, expressas em textos. Outra é a própria experiência de vida, tanto a pessoal, como a coletiva, de ver e observar a História em pleno desenvolvimento.
A experiência do pós-golpe teve o efeito de mudar a minha percepção da História nacional. Desde 2016, vivenciamos uma situação de desmonte do Estado e da economia nacionais em favor do rentismo. Nunca foi um segredo essa situação e o caráter colonial do Brasil e de suas elites sempre foi algo que reconheci e ponderei em meus textos. No entanto, reconheço que o subestimei e precisei ver Temer e seu grupo literalmente vendendo o país para me convencer do quão saqueadora e parasitária a elite brasileira é. Hoje, se fosse reescrever alguns dos meus artigos e livros, o caráter colonial e dependente (para usar termos clássicos) do Brasil e de suas elites e a diferença de perspectivas com relação a elites menos colonizadas, como a chinesa, a coreana ou a alemã, seriam reforçados.
Digo o mesmo no tocante aos efeitos e heranças da escravidão. Que a sociedade brasileira, como a americana, é profundamente marcada pelos séculos de escravidão, é algo evidente e isso em inúmeros aspectos. No tocante à dificuldade para a construção da cidadania e da cultura dos direitos, os efeitos de séculos de escravidão são especialmente marcantes, para os afrodescendentes ou não. Os brasileiros se acostumaram (ou foram forçados) a acompanhar a realidade como expectadores mais ou menos passivos, obedecendo e aceitando-a como inevitável, de uma forma quase fatalista. Joaquim Nabuco já pontuava isso no século XIX e não posso dizer que seja uma novidade afirmar que a herança mental da escravidão e do sistema escravista seja um obstáculo à cidadania.
Precisei, contudo, do choque da realidade para notar a força desse sentimento. O governo Temer avança item a item, ponto a ponto, no desmanche da Constituição de 1988, do pacto social criado na era trabalhista e varguista e nos leva, como já citei em textos anteriores, para trás. A cada ação de Temer e seu grupo eu imaginava “agora se chegou ao ponto de saturação e haverá um movimento contrário”. Mas não há. A reação das pessoas – e, em especial, dos que serão inevitavelmente mais afetados – é quase nula. Não há movimentação, reação, nada. E nem se pode afirmar que há uma reação indignada contida por forças repressivas. Não há indignação, não há sequer compreensão ou curiosidade pelo que está por vir. Simplesmente, “business as usual” e trocam-se receitas de bolo, carinhas de anjo e outras trivialidades na internet.
A herança da escravidão é a única culpada disso? Não, pois uma herança não é condenação. Os próprios escravos resistiam a ela e, em tantos momentos, os brasileiros lutaram e se revoltaram por seus direitos. Mas não nesse momento. É provável que haja outros elementos no ar explicando a nossa (e me incluo nessa crítica) total passividade: o descrédito do modelo petista e do próprio PT (em parte justificado, em parte exagerado), a própria desmobilização dos movimentos sociais feita por ele, a falta de lideranças, o monopólio quase totalitário da mídia, etc. Mesmo assim, o choque da realidade me fez repensar textos antigos ou não tão antigos meus (como aqueles em que discuti a questão do pertencimento cultural brasileiro) e ver como a chave da escravidão é realmente fundamental para entender este país. Culturalmente, talvez sejamos mesmo filhos de Portugal, mas dentro de um mecanismo de exploração que, de tão evidente e óbvio, às vezes passa despercebido.
Colonialismo e escravidão. Termos tão tradicionais no estudo da história do Brasil e do continente americano. Talvez esteja mesmo na hora de retomá-los e recuperá-los. O mesmo pode ser dito do conceito de alienação. A realidade o demanda.