A conjuntura dos últimos tempos não deixa realmente de me surpreender. Num primeiro momento, considerei que o objetivo da remoção de Dilma do poder fosse simplesmente o retorno a 2002, ou seja, ao período pré-Lula. Uma volta à política neoliberal, talvez com um víés moralizador mais forte para dar conta dos recentes ares evangélicos, e pronto.
Logo percebi que estava equivocado e que o objetivo era maior, de retornar a 1988, antes da Constituição atualmente em vigor. Direitos então aparentemente consolidados, como saúde e educação, começaram a ser revogados. Se, antes, tais direitos ainda não estavam plenamente implantados, começaram a ser questionados até mesmo no plano teórico e legal.
1988, contudo, pareceu não ser suficiente e 1930 começou a se avizinhar no horizonte. Uma democracia apenas teórica ou formal, praticamente sem nenhuma proteção social ou trabalhista, uma economia agrário-exportadora, etc. Até escrevi um texto, nesse espaço, sobre como Temer seria o novo Washington Luís.
Pouco tempo depois, mais uma vez, o horizonte temporal se ampliou e a caminhada 1888 e 1889 se tornou evidente. Não no sentido formal (pois não pegaria bem recolocar a Monarquia no poder ou revogar a lei áurea), mas no prático. O sistema político está a ser plenamente reestruturado e reorganizado num esquema Mídia-Judiciário-Legislativo que torna praticamente impossível que qualquer tipo de perspectiva progressista volte a ser implantada no país. E a nova estruturação da economia e do mercado de trabalho implica na volta a uma economia plenamente agrário-exportadora e de exploração da mão-de-obra barata.
Examinando, contudo, o desmonte da política de defesa nacional e a rápida construção de uma política exterior de total subordinação aos interesses das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos, fica evidente que nem o Império é o horizonte que se busca, mas o colonial, da América portuguesa. Um retorno ao passado de, ao menos, 400 anos é o que se busca nesse momento. Nada que deveria espantar, na verdade. Se o “modelo brasileiro” foi concebido naquela época e continua a beneficiar, em essência, os mesmos atores, por que não retornar ao seu início?
Em todos esses anos, o “modelo brasileiro” se revelou incrivelmente eficaz e adaptável para aquilo a que se propôs, ou seja, deixar muito ricos os senhores do país. Ele foi adaptado e modificado em alguns momentos. Vargas e mesmo os militares consideraram necessária a modernização industrial do país, ainda que em termos autoritários, enquanto boa parte das elites preferia o modelo agrário. Uma política externa independente foi buscada em alguns momentos, enquanto em outros se preferiu a simples subordinação. Ou seja, o modelo se alterou e se reconfigurou, mas nunca perdeu a sua essência. Agora, no cenário em que vivemos, seus atores e beneficiários se sentem seguros para fazê-lo retornar às suas origens.
E devem se sentir seguros, com certeza. Quem vive no Brasil não vê o menor sinal de resistência, revolta ou mesmo de consciência do que está a ocorrer. A máquina do tempo nos conduz para trás, num ritmo acelerado, e os que pagarão o pato, de verdade, não percebem ou não querem perceber. Os perdedores serão os pobres, as minorias, os empresários e microempresários que dependem de um mercado interno em desaparecimento e o país como um todo. Os vencedores serão os de sempre.
Claro, a volta ao passado nunca é perfeita. Vários elementos do mundo contemporâneo estão mais do que presentes e continuarão. A pós-verdade, a manipulação via mídia e redes sociais, o ódio político exacerbado, etc. Tudo continuará e não seremos obrigados a vestir roupas do século XVII ou usar a bandeira da coroa portuguesa. Mas o sentido do atraso está ai. O arcaísmo como projeto – já dizia o título do famoso livro dos historiadores Fragoso e Florentino. Mais do que verdadeiro.
A China ambiciona ser a grande potência do século XXI. Os EUA querem continuar a ser o que são. Nós não ambicionamos nada. E nem falo aqui de uma utopia ou sonho, mas simplesmente um capitalismo (e uma democracia) moderno, como o alemão ou o coreano. Para o Brasil, o eterno presente e/ou passado, de 1617, 1517 ou anterior.
Donald Trump faz (ou tenta fazer), nos Estados Unidos, uma política neoliberal radical, mas, no discurso, a ideia é de fazer voltar o relógio da História para os anos 1950, para uma época de bons empregos industriais, sem globalização e quando as minorias não incomodavam. Já na Turquia, o plano é ir para trás de Ataturk e dos projetos de Estado laico e moderno. Os EUA marcaram sua máquina do tempo para 60 anos, os turcos para 100 anos e nós para 400 anos ou mais. Parabéns, estamos vencendo. No campeonato do atraso, somos mesmo imbatíveis.