Escrevo nos primeiros dias da presidência de Donald Trump nos Estados Unidos. Saber exatamente como será seu mandato e como os Estados Unidos e o mundo estarão em quatro anos é tarefa para adivinhos, mas, enquanto historiador, posso oferecer algumas impressões sobre como imagino a situação a vir.
Donald Trump, como qualquer político, foi eleito a partir de uma base social e, se quiser sobreviver, terá que atender minimamente o que essa base social quer. Uma parte dos que o elegeram deseja a reversão de toda e qualquer coisa que se assemelhe ao pensamento progressista, chamado de liberal no léxico americano, e os sinais indicam que eles serão rapidamente atendidos. Veremos, de imediato, medidas para facilitar ainda mais a posse de armas, de criminalização dos problemas sociais, etc. Negros, mulheres, homossexuais, defensores do meio ambiente e dos direitos animais e outros podem esperar, desde já, uma ofensiva geral – simbólica e real – contra seus direitos.
Outro público que elegeu Trump foi a classe média-baixa e trabalhadora branca, para quem Trump se apresentou como um homem fora do sistema, alguém que iria enfrentar Wall Street e os privilégios do poder econômico. Hillary Clinton perdeu as eleições, na verdade, no momento em que – como quase toda a esquerda hoje em dia – aceitou o modelo neoliberal que tanto penaliza as pessoas comuns e mudou o foco para as questões de gênero e raciais. Não que elas não sejam importantes e válidas, mas, no momento em que Hillary considerou que a única plataforma viável para os democratas era a de dar às minorias o mesmo direito de “disputar o seu lugar ao sol” dos brancos e dos homens dentro do neoliberalismo, seu apelo realmente perdeu sentido. Bernie Sanders tinha razão.
O dilema para Trump é que ele é um homem do sistema e que não vai mexer nas estruturas do sistema neoliberal dos Estados Unidos. O seu discurso foi antiliberal e não espanta que boa parte do poder econômico tenha preferido Clinton. Mas ele é, essencialmente, discurso e seu governo já começou com os mantras de redução de impostos, de remoção de barreiras às empresas, questionamento zero ao sistema que permite aos ricos pagar menos impostos e ter mais acesso aos recursos do Estado que os pobres, etc. O neoliberalismo está tão entranhado no país – e no mundo – que simplesmente torná-lo menos injusto seria tarefa hercúlea. Trump, contudo, sequer vai tentar, já que ele uma parte integrante do mesmo. A grande questão, então, é como agradar aquela parte do público que o elegeu justamente para isso.
A saída para isso é focar no aspecto internacional do modelo neoliberal, ou seja, o livre-comércio. Durante a campanha, Trump não prometeu regulamentar o mercado financeiro, questionar o poder do dinheiro em todas as esferas da sociedade ou criar mecanismos para diminuir a, cada vez maior, concentração de riqueza e oportunidades. Sua maior promessa foi a de romper com a globalização, trazendo empresas e empregos de volta para o país. Como o maior problema dessa classe trabalhadora branca é o desemprego estrutural ou a nostalgia pelos antigos empregos industriais, não espanta que tenha sido um discurso bem-sucedido.
Ele não irá, com certeza, atacar as bases desse modelo globalizado neoliberal. Afinal de contas, o sistema financeiro americano é o centro desse modelo e questionar a globalização liberal significaria questionar o próprio capitalismo americano de hoje. Dessa forma, ao invés disso, ele voltará seus canhões contra aqueles parceiros mais fracos, nos quais ele pode descarregar sua raiva e conseguir até alguns benefícios sem questionar o sistema como um todo.
Nesse sentido, creio que os dois exemplos mais evidentes, ainda que em polos opostos, são China e México. A China foi, provavelmente, o país que mais se aproveitou da globalização liberal implantada nas últimas décadas. Ao se transformar no principal centro industrial do mundo, no lugar para onde as multinacionais se transferiram para aproveitar a mão-de-obra barata e montar seus produtos para reenvio para os Estados Unidos, Europa ou para o resto do planeta, a China se tornou uma potência econômica e boa parte dos empregos perdidos da América para lá foram.
Trump, contudo, não poderá agir com a China como gostaria. Os EUA precisam da China para garantir a lucratividade das suas empresas e para manter abastecidos os seus supermercados e lojas. Mesmo com a revolução do petróleo nos EUA (que barateou enormemente a energia no país), é discutível se seria possível romper os laços comerciais e industriais com a China. Além disso, se as empresas americanas realocassem a sua produção de volta ao território americano, aceitariam os operários americanos salários chineses? A simbiose é tamanha que uma ruptura se torna difícil, senão impossível. Além disso, é a China que financia parte expressiva do déficit comercial e fiscal dos EUA. Golpear e atingir a China de verdade causaria um efeito rebote devastador.
Por fim, a China aceitou seu papel no mercado globalizado neoliberal, ou seja, o de fornecedor de mão-de-obra barata, mas apenas como alternativa provisória, dentro de um projeto nacional. A China é uma potência militar e investe pesado em infraestrutura, ciência, tecnologia e educação para atingir um novo estágio de desenvolvimento. Talvez ela ainda não possa se livrar do “abraço americano”, mas ela tem elementos para se defender, em todos os sentidos, e Trump, imagina-se, sabe disso.
O México é um caso diferente. Dentro do domínio do neoliberalismo, o México tem o mesmo papel da China no mercado global, ou seja, fornecer mão-de-obra barata para as empresas americanas no próprio território mexicano ou através da emigração. O México, contudo, é um Estado muito mais fraco, nas fronteiras dos EUA, e cuja importância para a economia americana, apesar de grande, é muito menos crucial do que a chinesa. O México, além disso, não teve nenhum projeto nacional, não se preparou para uma possível mudança de cenário. Aceitou sua posição subordinada e se conformou com ela.
O México, nesse sentido, pode ser golpeado e humilhado de forma muito mais direta e sem consequências do que a China. O Estado mexicano tem poucas alternativas para responder, sua economia é totalmente dependente e, para piorar, seus milhões de emigrantes em território americano estão numa situação de fragilidade. É mais do que provável que a fúria antissistema de Trump se concentre no México e nos mexicanos. Eles é que pagarão o preço.
Esse é um modelo, aliás, universal. A direita populista tem um discurso antiliberal, mas não vai realmente questionar o sistema. No lugar, ela se proclama a defensora dos prejudicados, mas de apenas alguns, atacando os que estão ainda mais abaixo na escala.
Dessa forma, a culpa dos americanos médios, hoje, não terem mais chances tão boas de ascensão social como a de seus pais não é das empresas que preferiram realocar sua produção para ganhar com os custos menores do trabalho fora dos EUA, mas dos mexicanos pobres que aceitaram trabalhar nelas. No discurso de Trump, é como se os mexicanos invadissem Detroit e roubassem um tijolo cada um, refazendo as fábricas em Guadalajara. Ou, do mesmo modo, a culpa do colapso dos serviços públicos na França não é do subfinanciamento induzido pelo pensamento neoliberal, mas dos imigrantes pobres que chegam. Ou, ainda, a queda da natalidade na Europa não se origina, em essência, de um modelo que não permite que as pessoas tenham renda ou estabilidade para planejar uma família, mas do feminismo das mulheres.
É claro que esse é um resumo geral da questão. Outros problemas derivados da globalização liberal (e que a esquerda, por outro prisma, acabou por apoiar, como o tópico da imigração) existem, como a perda de identidade, de referenciais, etc. A questão básica, contudo, é que o modelo neoliberal e a globalização produzem vencedores e derrotados e, nesse momento, uma parte dos derrotados encontrou uma maneira de responder, ainda que contra os que estão abaixo e não acima.
Infelizmente, a verdade é que, quando a esquerda abandonou suas antigas bandeiras e esqueceu a principal contradição em qualquer sociedade capitalista – a existente entre capital e trabalho, entre pobres e ricos – ela abriu espaço para a direita populista, seja nos EUA, na França ou em outros locais. O mundo neoliberal é um mundo de competição desenfreada e onde a esmagadora maioria perde (renda, direitos, estabilidade, etc.). Se a esquerda diz que não há nada a fazer a não ser aceitar, ela iguala, em essência, seu pensamento e discurso à direita liberal. Mesmo sendo mais civilizada ou absorvendo outras lutas válidas, não é o suficiente e o espaço para a direita populista acaba por crescer.
No comício anti-Trump de Chicago no fim de semana, aliás, um sinal de que a lição não foi aprendida. Uma manifestação válida, para indicar o descontentamento de mulheres, negros, latinos, homossexuais, etc. Mas onde estão os trabalhadores, tanto desses grupos como homens, brancos e heterossexuais? Até essa ponte ser refeita, não creio haver possibilidade de recomposição da esquerda, seja nos EUA, na América Latina ou na Europa.