Em um livro famoso de décadas atrás, o sociólogo americano Barrington Moore trabalhou com o conceito de Injustiça social. Sua questão era o porquê de, em determinadas situações, haver um consentimento ou resignação populares frente a certas situações e, em outras, revolta e oposição. Sua resposta, resumindo grosseiramente o livro, era que a revolta se dava sempre que se definia uma sensação de injustiça, a qual conduzia à raiva e ao ódio. Só entendendo o que uma determinada população entendia em termos de “justo” ou “aceitável” é que se podia compreender sua passividade ou revolta. Ele argumentava, por exemplo, que a opção pelo nazismo por parte substancial da população alemã teria vindo não de argumentos racionais ou de busca real de soluções, mas de um sentimento de profunda indignação, de injustiça frente aos acontecimentos, à crise econômico e social. Os alemães sentiam que “faziam a sua parte”, mas o que era justo lhes era negado. Da sensação de injustiça à raiva e, por fim, ao ódio e à política do ódio.
Como não pensar nisso agora que, para espanto de todos – incluindo o meu – Donald Trump se tornou presidente dos EUA? Ele venceu a oposição do seu próprio partido, da maior parte das elites financeiras, econômicas e intelectuais e mesmo da grande mídia. Uma vitória impressionante e cujos desdobramentos reais só veremos quando ele assumir efetivamente o poder.
Entender essa vitória requer, antes de tudo, saber quem votou nele e tais dados já estão disponíveis. Como esperado, Hillary Clinton teve uma esmagadora votação entre os negros e, em termos relativos, superou Trump entre os latinos, as mulheres, os jovens e os brancos com nível superior e urbanos. Mesmo assim, com a exceção dos afro-americanos, sua vantagem não foi tão substancial como se esperava. Muitas mulheres ou latinos não tiveram problemas em votar em Trump, esquecendo suas afirmações misóginas ou contra os mexicanos, e preferindo confiar em suas promessas de empregos ou outras. A identidade étnica ou de gênero é algo fundamental, mas ficou claro que não é suficiente para conduzir ao voto ou, ao menos, não no nível esperado pela candidata democrata.
No caso de Trump, ele teve uma votação razoável entre as mulheres e em algumas minorias, como os latinos. Mas seu público chave, que lhe deu a vitória, é claro: homem, branco, classe trabalhadora ou média baixa, sem educação superior, vivendo em zonas rurais ou em pequenas cidades. Esse público lhe apoiou até em lugares tradicionalmente democratas, como Wisconsin ou Pensilvânia.
Essa, na verdade, é a parte da sociedade americana que se sente mais ressentida e ameaçada nas últimas décadas. As políticas de ação afirmativa, de gênero e racial, tiraram desse grupo o seu capital simbólico. Antes, mesmo pobres, eles tinham status social superior por serem homens e brancos. Não creio que tal status superior tenha sido realmente eliminado, pois real igualdade de gênero e racial é algo que não existe nos EUA, mas a perda já foi suficiente para causar incômodo. Depois, as suas referências básicas – a comunidade, a Nação, etc. – foram sendo questionadas por valores multiculturais, cosmopolitas, etc. O incômodo é real. Não tenho dúvidas de que muita gente (de qualquer classe social) votou em Trump por racismo, misoginia, xenofobia ou, simplesmente, para protestar contra esse novo mundo.
O drama maior, contudo, veio do neoliberalismo e da globalização liberal que foram implantados a partir dos anos 1980. As fábricas fecharam, indo para a China ou para o México e os empregos sumiram. Os empregos que restaram não permitem mais – especialmente para os com menor educação – uma vida estável e digna e ainda são disputados com ondas de imigrantes. Os poucos serviços sociais oferecidos pelo Estado americano foram cortados em nome do Estado mínimo liberal e o resultado é subemprego estrutural e falta de perspectivas.
Para a maior parte dos americanos, o neoliberalismo e a globalização se traduzem pelo fim do sonho americano de que trabalho duro e esforço levam a recompensas e a uma vida melhor. Para a maioria dos americanos, o “sonho americano” não existe mais. Apenas para os imigrantes, que vem de realidades muitos piores, ele ainda pode existir. Ao invés de um trabalho fixo na Ford, um subemprego na grelha de uma lanchonete, se tanto. Essa é a realidade da classe trabalhadora e média baixa do país, muito ressentida e com ódio da situação.
Aqui é o ponto crucial. A classe média mais afluente, beneficiada pelo neoliberalismo e pela globalização, votou em Trump por valores, preconceitos ou coisas do gênero. Já a classe média baixa e a trabalhadora votou nele por ele ter sido o único que apresentou uma resposta ao seu profundo ressentimento e ódio da situação, especialmente a econômica.
Com efeito, o partido republicano tradicional sempre tem olhado para essas pessoas como “losers” e os deixado a mingua, sem oferecer alternativas. O partido democrata também é incapaz de oferecer soluções a seus problemas. Já que os democratas (desde Bill Clinton até Hillary Clinton) aderiram aos valores neoliberais e globalizantes, que respostas concretas eles poderiam oferecer? No tocante às mulheres, aos latinos ou aos negros, ainda se poderiam sugerir políticas compensatórias com base no gênero ou na etnia. Para os brancos pobres, nada. Esse foi o setor chave que Trump captou.
Isso já estava claro nas primárias democratas. Bernie Sanders, que oferecia, ao menos potencialmente, uma perspectiva de futuro para a classe média e trabalhadora, ganhou em quase todos os Estados do Meio-oeste onde, agora, Hillary Clinton perdeu. Ou seja, esses grupos sociais estavam dispostos a subscrever uma proposta democrata que atenderia aos negros, aos latinos e às mulheres, mas que não se esqueceria deles. Quando Hillary se tornou a candidata, a sensação geral é que eles seriam esquecidos de novo e Trump preencheu o vazio.
Contou também, claro, a sensação de que Hillary era uma pessoa do establishment, alguém ligada às forças econômicas e financeiras que dominam a Nação americana (e o mundo), o que é verdade. Bernie Sanders expôs isso com clareza total. Já Trump também pertence a esse mundo, mas se apresentou como outsider, fora da política, e isso, apesar de não ser verdade, funcionou. O populismo de Trump, ao menos no discurso, é profundamente conservador, mas também é bastante antiliberal e protecionista, o que deve ser destacado se queremos entender o que está acontecendo.
O que quero dizer é que, apesar de ser verdade que a votação de Trump ter tido uma base de preconceito racial, xenofobia, misoginia e etc. que é impossível desconhecer, a questão central parece ter sido de classe, de protesto contra uma situação social insuportável e de forte ressentimento. Nesse sentido, foi bem menos irracional do que parece.
Trump resolverá os problemas dessas pessoas? É improvável. Ele não vai realmente desmontar as bases do sistema liberal e neoliberal americano do qual ele faz parte e só um protecionismo radical traria as fábricas de volta de Shangai para Michigan. Ao pisar com mais força nos negros, nos imigrantes e nas feministas, talvez ele dê algum consolo simbólico aos que nele votaram. Afinal, eu posso me sentir melhor tanto melhorando de vida como vendo meus vizinhos ou concorrentes vivendo pior…. Mas não mais do que isso.
Essa talvez seja uma lição a ser aprendida pela esquerda, especialmente o partido democrata. Se se quer realmente recuperar esses votos, há de se fazer novamente uma política de esquerda clássica, de classe. As políticas de ação afirmativa e por mais igualdade racial e de gênero foram avanços civilizatórios e seria absurdo sugerir a sua reversão para recuperar esses eleitores. Mas apresentar propostas concretas contra a desigualdade seria o único jeito de refazer a aliança da esquerda com os mais pobres. Parece incrível ter que dizer às esquerdas que elas precisam ouvir o povo, mas é isso que está no ar.
Essa mesma situação de ressentimento pelos males do neoliberalismo sendo aproveitado pela direita populista se repete no Brexit, na França e em tantos outros locais. Uma direita alimenta a outra e faz os deserdados se voltarem contra outros deserdados.
No Brasil, os riscos de um Trump parecem aumentar. O governo Temer não resolveu os dilemas da economia e, pelo contrário, suas políticas só tendem a aumentar os problemas e a piorar a situação dos pobres e da classe média. O ressentimento e o ódio da classe média contra o PT por ele ter mexido em uma pequena vírgula na história da desigualdade nacional indicam o potencial de ódio disponível, que pode crescer ainda mais e ser captado por uma figura do tipo Bolsonaro.
Numa hipotética eleição de 2018 entre Alckmin e Bolsonaro, ficaríamos numa situação parecida com a de Hillary e Trump. Ambos não vão mexer realmente nos dilemas nacionais e na estrutura obscena de poder e riqueza. Não haveria, pois, com nenhum dos dois, nenhuma solução real. Alckmin, contudo, representaria a direita do establishment, que quer ganhar a eleição para continuar a fazer dinheiro, e que seria apoiada pela mídia, pelo Estado e pela elite. Tudo fica como está, com um manto de estabilidade. Já Bolsonaro, criado e alimentado por essa direita e pela mídia, poderia ultrapassá-las e canalizar toda a raiva e o desgosto das pessoas. Provavelmente, contudo, tal raiva iria contra outros pobres e deserdados da sociedade e não contra os que a comandam. A raiva pode ser o mais forte sentimento humano, mas, mal canalizada, só leva à barbárie.