João Fabio Bertonha

fabiobertonha@gmail.com

Admito. Admiro cada vez mais os neoliberais

Na minha última passagem pela Argentina, tive a chance de ouvir muitas comunicações sobre a trajetória do pensamento e da ação política neoliberais nas últimas décadas, tanto na Europa como nas Américas. E, devo reconhecer, minha admiração por eles só tem crescido.

Admiração não significa concordância e nem aprovação. Boa parte dos problemas e questões que afetam a todos no mundo contemporâneo é oriunda da presença do neoliberalismo e não hesito em dizer que ele foi e é a força motriz do atraso e da injustiça nos tempos atuais. Esse artigo – http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FNeoliberalismo-a-ideologia-na-raiz-de-todos-os-nossos-problemas%2F7%2F36031 – indica bem isso.

Minha admiração é de outro nível, pela capacidade inacreditável em fazer um conjunto de ideias e práticas que parecia destinado à lata de lixo da História ressurgir com toda a força e dominar o cenário em todo o Ocidente, senão em todo o globo. E, do mesmo modo, em conseguir fazer uma ideologia que traz mais danos do que benefícios para a maioria das pessoas ser incorporada à vida delas não como ideologia, mas como senso comum, verdade que sequer se questiona.

O antigo liberalismo, que combinava a democracia com a liberdade econômica, nunca foi aplicado integralmente, na prática, em nenhum lugar. Mesmo assim, era a base do pensamento ocidental pré-1914 e, especialmente, pré-1929. A crise do sistema, que culminou no colapso geral de 1929, abalou essa antiga certeza nos seus alicerces. Ditaduras se tornaram a norma em boa parte do Ocidente e a intervenção do Estado na economia, em maior ou menor grau, se tornou a norma.

Depois de 1945, no Ocidente desenvolvido, a democracia retomou, felizmente, seu lugar, mas a proposta de voltar ao mundo anterior, de menor intervenção do Estado, de livre competição entre as pessoas, etc. não foi em frente.  Os Estados de bem-estar social foram reforçados e/ou construídos – em graus diferentes – em todo o Ocidente e o bem-estar das pessoas atingiu níveis nunca antes vistos, enquanto o Estado intervinha na economia, oferecendo alternativas para a iniciativa privada, etc. Capitalismo, mas com democracia e justiça social via ação do Estado, se revelou uma fórmula bem sucedida. Nos EUA, na Europa e mesmo na América Latina, os avanços sociais foram substanciais e a intervenção do Estado ao lado do mercado facilitou, inclusive, o desenvolvimento do Oriente, especialmente dos tigres asiáticos.

Esse sistema, ou modelo, era perfeito, sem falhas? Claro que não, tanto que começou a perder dinamismo a partir dos anos 1970. A necessidade de repensá-lo, reformá-lo ou adaptá-lo se tornou evidente. O que espanta, na verdade, é que a alternativa vencedora tenha sido justamente o neoliberalismo, ou seja, a reciclagem e reelaboração do antigo liberalismo para uma nova era. Um resultado que pareceria impossível para alguém que viveu o século XX, mas que acabou acontecendo.

Realmente, o problema enfrentado pelos neoliberais era difícil. O liberalismo, seu precursor, havia se revelado incapaz de resolver as crises do sistema e de promover real desenvolvimento. O modelo pós-1945 era melhor: democracia (ao menos no Ocidente desenvolvido), índices econômicos positivos (ou seja, prosperidade das empresas e do próprio capitalismo) e melhoras expressivas dos índices de educação, saúde, moradia, oportunidades, etc. Como convencer as pessoas de que esse novo modelo era negativo e que a volta ao sistema anterior, ainda que reciclado, era o correto?

Os neoliberais se aproveitaram, claro, de cada falha ou crise desse sistema. Na crise do petróleo dos anos 1970 ou na do capital a partir de 2008, repetiu-se à exaustão que todos os problemas se deviam à intervenção do Estado na economia e que a única solução era a volta às políticas econômicas “naturais, verdadeiras, não ideológicas” que seriam as liberais. O colapso do comunismo também foi convertido, habilmente, numa prova do colapso de toda e qualquer esquerda e a própria esquerda incorporou isso, com resultados trágicos.

Eles também perceberam que a própria modernização da sociedade produzia resultados – liberação da mulher, crescimento das reivindicações de minorias raciais ou de gênero, secularização crescente – que geravam desconforto e desejo de contra-ataque por parte de outros grupos conservadores, especialmente os religiosos. A aliança com esses grupos permitiu a conquista do poder político pelos neoliberais nos EUA, no Reino Unido e em boa parte do mundo.

Nada disso teria sido suficiente, contudo, sem o trabalho de formiguinha, de guerra cultural, contínuo, eficiente e pragmático. Desde a reunião entre Mises, Hayek e outros para definir as normas do novo liberalismo, em 1938, e a fundação da Sociedade Mont Pèlerin, em 1947, os neoliberais trabalharam com afinco para difundir sua mensagem nas sociedades ocidentais. Através de redes de think tank e maciço investimento em jornais, publicações, cadeias de rádios e, atualmente, na internet, a mensagem neoliberal foi sendo passada para as pessoas, dia após dia, hora após hora. Pouco a pouco – e aproveitando-se que a memória histórica do passado ia se perdendo para a maioria – foram convencendo as pessoas de que o liberalismo é solução e vantagem não apenas para os bem posicionados para nele competirem (os que já nascem ricos, especialmente), mas para todos; de que a culpa das pessoas não conseguirem sair da pobreza é única e exclusivamente delas, de que privatizar e individualizar tudo é a solução.

A vitória foi tão grande que até mesmo projetos surgidos com outra concepção – como a União Europeia – se tornaram veículos de propagação do neoliberalismo e as evidências que deveriam rechaçá-lo acabaram por ser revertidas em seu favor. Há muitos anos que a classe média dos EUA perde renda e prestígio, mas a ideia do sonho americano, meritocrático e liberal, ainda é predominante. O governo FHC no Brasil, apesar do benefício do controle da inflação, terminou em descrédito, para as mesmas ideias voltarem com força total agora. Mesmo as crises do sistema, agora, não servem mais para ameaçá-lo. A brutal crise do capitalismo financeiro a partir de 2008, por exemplo, deveria ter servido para demonstrar a sua fragilidade, mas só serviu para esse capitalismo financeiro adquirir ainda mais força. A dominação cultural e midiática transforma todas as falhas em vantagens e a situação prossegue imutável.

Enfim, há de admirar isso. Se houve bons leitores de Gramsci e de suas teorias de “hegemonia cultural”, foi na direita e, especialmente, na direita liberal. A aplicação dessas teorias, claro, só foi possível porque havia forças muito poderosas (em essência, os que se beneficiam do liberalismo, ou seja, os mais ricos) os financiando e sustentando, década após década. Mesmo assim, é fato que eles souberam agir e estão, agora, colhendo os resultados. Quando a direita brasileira proclama que a escola é um veículo de propagação marxista (e defende coisas como o projeto “escola sem partido”) ou que a mídia nacional está dominada pela esquerda, pelo lulismo e pelo populismo, o absurdo salta aos olhos.

Cheguei a achar que isso era sintoma de paranoia ou de alguma síndrome de distorção da realidade, mas vejo que estava errado. A dominação cultural da direita no Brasil já é quase absoluta, tanto que suas propostas passaram de “ideologia” (pois não passam disso, como qualquer outro conjunto de ideias) para “senso comum”, “bom senso” ou “única saída real”.  Mesmo assim, ela quer consolidar isso e reprimir os poucos espaços onde ainda há um pequeno espaço de reflexão e resistência requer ainda mais investimento na guerra cultural, inclusive alimentando fantasias e indo para o campo da repressão, legal que seja. A guerra cultural prossegue e investigar melhor como a direita obteve resultados tão expressivos é um exercício a ser feito, até para que possamos sair da admiração ou da perplexidade para, quem sabe, esboçar alguma reação.

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Publicado em julho 22, 2016 por .
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