Entre 2009 e 2014, a Grécia foi eleita o exemplo, a vítima a ser sacrificada para mostrar, aos incautos, o que acontecia com quem ousava romper as amarras do establishment financeiro e liberal. Por anos a fio, ela foi mantida em uma vida quase artificial, com euros sendo administrados apenas para impedir que ela entrasse em colapso completo, o que geraria problemas para o sistema financeiro. Em troca dessa ajuda, ela foi submetida a uma política míope, de austeridade em meio à crise, de cortes na despesa pública, nos salários e nas despesas sociais.
Austeridade e controle das contas públicas são valores a serem perseguidos e ninguém pode afirmar que os gregos (assim como os portugueses, os espanhóis, etc.) não cometeram seus pecados e erros, sendo o principal o de se endividar em euros para financiar o consumo, sem se preocupar com o equilíbrio da balança comercial, a competitividade, etc. O problema central que lançou a crise nesses países, aliás, foi o desequilíbrio comercial, o qual beneficiou justamente a Alemanha. Por anos, esses países se endividaram para comprar produtos do norte da Europa (ou seja, mais consumo e crescimento de produtividade menor), enquanto a Alemanha e outros países do norte da Europa faziam o contrário (menos consumo e mais aumento de produtividade). O sistema funcionava, assim, muito bem enquanto havia liquidez para sustentar esse consumo. Quando essa diminuiu, o colapso era evidente.
A dívida pública, dessa forma, era uma bomba relógio, pois nenhum Estado pode se endividar para sempre, nem mesmo o que emite a moeda da dívida, como os Estados Unidos. No entanto, a origem da crise não foi essa dívida, que só se tornou impagável depois que a questão da competitividade se tornou evidente. Tanto é assim que a Itália, cuja dívida, em termos absolutos e relativos, é imensa, está conseguindo sobreviver com dificuldades, mas sem os dramas sociais de Portugal, Espanha ou Grécia. A Itália, afinal, não vive de exportar óleo de oliva ou de especulação em imóveis e ainda tem a segunda base industrial da Europa, o que faz diferença. Dívida pública, na verdade, se combate em momentos de prosperidade (estabelecendo um teto de despesas frente ao crescimento da arrecadação, por exemplo) e em longo prazo e cortar gastos durante uma crise é a pior receita possível.
Dessa forma, o que potencializou a crise foi a maneira encontrada para enfrentá-la. Nos EUA, a resposta da FED foi menos keynesiana e mais liberal do que parece. Obama não se preocupou com o controle do déficit público, especialmente no início da sua administração, de forma a não deprimir ainda mais a demanda, o que se configura, ao menos em princípio, em uma medida keynesiana. O que o FED fez em essência, contudo, foi seguir as ideias de vários liberais, como Milton Friedman, que identificaram, na crise de 1929, um problema de suprimento de dinheiro. Para enfrentar crises como essa, a única ação do Banco Central seria disponibilizar recursos ao sistema financeiro, de forma que ele pudesse atender as demandas privadas. Foi isso que o FED fez e, nessa combinação entre um liberalismo que absorveu algumas das lições de 1929 e um keynesianismo light, os EUA saíram bem antes da crise, ainda que não completamente.
Na Europa, o Bundesbank, força central no BCE, não aceitou nem aumento dos gastos públicos nos países em condições, nem que o BCE emitisse um tipo de eurobônus para inundar o mercado de dinheiro, como foi feito nos EUA. O liberalismo por eles proclamado foi aquele mais tradicional: para sair da crise, bastaria restaurar a confiança nos mercados. Cortes na despesa pública e nos salários reduziria custos, diminuiria a dívida e daria confiança aos investidores, fazendo o sistema voltar a funcionar. Todos os que quisessem alguma ajuda deveriam fazer essa “lição de casa” de cortes de salários, benefícios sociais, pensões, etc. para ajustar a competividade das suas economias e a confiança nos mercados.
Aqui, entrou também a psicologia dos alemães, sempre preocupados com a inflação que poderia ser gerada pela impressão de moeda e desejosos de punir os mediterrâneos, demonstrando as virtudes germânicas. E contou também o fato de a Europa não ser um Estado único. Ângela Merkel respondia não aos eleitores gregos ou portugueses, mas aos alemães. Enquanto a economia alemã continuasse mais ou menos bem e os eleitores alemães continuassem a crer nas suas virtudes, ela resistiria a fazer qualquer coisa, mesmo que quisesse.
O mais interessante é que nem mesmo os fatos serviram para mudar essa barreira de preconceitos ideológicos e culturais. Na Grécia, por exemplo, depois de sacrifícios absurdos, a competitividade continua baixa, o déficit público explodiu e o crescimento não voltou. Em maior ou menor escala, o mesmo ocorreu em outros países no regime da austeridade. A economia alemã começou a ser afetada e começou a haver risco de deflação. Mesmo assim, num misto de oportunismo e miopia, as elites financeiras da Europa (alemãs, mas também espanholas, portuguesas e outras, que usam a crise para impor a sua agenda) resistiam a qualquer mudança de rota. Se essa rota não levava a lugar nenhum, mero detalhe.
A ação de Mario Draghi, finalmente conseguindo uma autorização para inundar os mercados com 1,2 trilhão de euros, representa uma mudança essencial de trajetória. Finalmente, após sete anos, o BCE poderá fazer, em essência, o que o FED está a fazer há anos. A vitória da esquerda na Grécia também pode representar uma importante mudança de trajetória.
A vitória de Tspras não significa o estabelecimento da República Socialista Soviética da Grécia e, provavelmente, haverá negociações e compromissos com a troika que comanda a economia grega há anos. Mas o que temos aqui é uma esquerda sem medo de enfrentar o senso comum, de dar a cara a tapa e de enfrentar os donos do poder. O que ela vai conseguir, como as coisas caminharão e se a Grécia se recuperará ou será punida com ainda com mais rigor, não sabemos. Temos, contudo, finalmente, um partido que se coloca firmemente contra a austeridade e quer discutir alternativas, doa a quem doer.
Essa vitória pode ser um resgate da política, do poder da democracia sobre o poder financeiro. E, o que é relevante, esse partido e essa liderança não se dizem apolíticos ou contra a política, posturas que são vazias e não levam a nada, como o lamentável 5 Stelle italiano. Eles se afirmam como de esquerda e acreditam que a política, mesmo nos moldes da democracia burguesa, pode significar mudanças concretas ou, ao menos, uma esperança. Se eles vão vencer ou perder suas batalhas, não sabemos. O chacoalhar da verdade única que está a afundar a Europa, contudo, é mais do que bem vindo. Os jornais italianos, hoje, tinham manchetes como “Ora cambierà tutto in Europa”. Verdade? Esperemos que sim.