Matteo Renzi: só Nixon poderia ir à China
Mesmo lendo sempre jornais italianos on line, é muito mais fácil, estando na Itália, observar a cena política e perceber as coisas. E nota-se uma mudança relevante, com o declínio visível do berlusconismo, que paralisou e fez a Itália andar por trás por vinte anos. Quem está no comando agora é a esquerda mais do que moderada do Partito Democratico e Matteo Renzi surfa na vitória eleitoral recente, nas eleições europeias.
O interessante é que Matteo Renzi não parece uma figura que vai fazer algum tipo de revolução social ou algo assim, pelo contrário. Suas propostas, em linhas gerais, parecem ser próximas as de Gerhard Schroder na Alemanha ou de Tony Blair na Inglaterra no início do século, ou seja, perfeitamente em linha com o ideário neoliberal.
Na Alemanha, Schroder tomou medidas, em essência, para elevar a produtividade sem aumentar os salários. O trabalho se tornou mais precário, mal pago (para os padrões alemães) e temporário do que era antes, ao mesmo tempo em que se cortaram inúmeros benefícios sociais, especialmente no seguro desemprego, previdência, etc. Como resultado, a Alemanha continuou a aumentar a produtividade (pelo investimento em tecnologia e também pela própria reconfiguração do mercado de trabalho), mas a massa salarial não cresceu. Já que os trabalhadores não podiam comprar os excedentes que eram produzidos e dada a qualidade dos bens produzidos na Alemanha, a economia alemã se tornou uma grande exportadora, enviando seus produtos para a Ásia, a América e, também, para os países da Europa do Sul.
Esses, ao contrário, aumentaram mais os salários do que a produtividade e compensaram importando produtos da Alemanha e do norte da Europa. E pagaram essa importação se endividando a juros baixos, já que agora todos tinham o euro. O resultado foi uma explosão, especialmente quando a bolha financeira explodiu. A única forma de reverter isso – sem que haja um rompimento com a política de austeridade e o neoliberalismo ainda vigente (especialmente no Bundesbank alemão) – é a Alemanha (governo, empresas e cidadãos) começar a gastar mais, enquanto os países do sul da Europa terão que recuperar competitividade, diminuindo salários, benefícios, etc. Sem a chance de desvalorizar a moeda, será inevitável atacar pelo outro lado.
É o que Matteo Renzi se propõe a fazer. Ele não dá indicações de que romperá com a política de austeridade ditada pela Alemanha e parece evidente que ele atuará para seguir o caminho alemão, com a esperança de recuperar competitividade e relançar a economia italiana. O faz de uma forma gradual, tentando salvar o salvável, etc., mas o cerne da sua proposta parece ser esse. Se vai dar certo, se será bom ou não para os italianos, é algo a se ver. A ação de Renzi, contudo, já nos permite duas reflexões.
Em primeiro lugar, que muitas vezes é a própria esquerda (especialmente essa atual da Europa, tão moderada que acabou por perder suas raízes) que, no mundo contemporâneo, faz o papel de “faxineira” para manter o domínio do capital. Renzi não pretende romper com a ordem estabelecida, no máximo tentando melhorar a posição da Itália dentro dela. Um governo de direita pode, muitas vezes, dar conta do recado, mas a vantagem do governo ser de esquerda é que a oposição é menor, já que a direita, agora na oposição, concorda em essência com o que está a ser feito.
Nos anos 1970, dizia-se, nos EUA, que só Richard Nixon poderia ter ousado ir à China. Ele era um homem tão à direita, tão reacionário, que ninguém o acusaria de comunista por estar indo a Pequim fechar um acordo com Mao. Talvez o mesmo possa ser dito aqui. Só Renzi pode fazer aquilo que a direita, Berlusconi e seus amigos, não conseguiu por duas décadas. Aliás, não conseguiu ou não quis, pois o grupo de Berlusconi só queria o poder realmente para enriquecer e se poupar de processos judiciais.
Novamente, ressalto que essa nova política pode ser boa ou má a Itália e que, nos detalhes, as propostas do PD e de Renzi são muito melhores do que as apresentadas pela direita. O fato inegável, contudo, é que é preciso, muitas vezes, um governo de esquerda para fazer uma “arrumação da casa” para a nova fase do capitalismo europeu. Schroder, Blair, Renzi, todos estão na mesma sintonia, sendo o caso italiano apenas deslocado no tempo.
Em segundo, é interessante ver como a política também é feita de decisões e como agir e impactar as pessoas produz resultado. Renzi pode ter seus defeitos e podemos concordar ou não com suas políticas, mas ele está realmente se movimentando, com propostas e ideias de reforma para todo lado, numa atividade frenética. Depois de décadas de estagnação, de uma república italiana sob o tacão berlusconiano, ver tanta atividade e desejo de mudar realmente causa impacto. Resta ver o que acontecerá.
A Itália, sabiamente e pacientemente, saberá se reinventar, como uma boa República, trazendo aos tempos atuais um país rico de tradições. Estou na torcida (pra manter o clima de Copa do Mundo) deste caminho.